O CEBRASPO reproduz abaixo a resenha crítica sobre o livro "Os Donos do Morro", escrita por Guilherme Moreira, professor de sociologia de escolas públicas do Rio de Janeiro localizadas em comunidades militarizadas pelas Unidades de Polícia Pacificadoras. Guilherme é também militante do MOCLATE, Movimento Classista dos Trabalhadores em Educação.
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No dia 14 de outubro, no auditório onde se realizaria um “debate” de lançamento do livro “Os Donos do Morro”, os organizadores da pesquisa foram surpreendidos pelo legítimo protesto realizado por estudantes da UERJ. Após o chamado escracho, organizado em repúdio à presença do comandante das Unidades de Policia Pacificadora (UPPs), Frederico Caldas, um dos responsáveis gerais pela aplicação da política opressora de ocupação, Dawid Bartelt, representante no Brasil da Fundação Heinrich Böll (apoiadora da pesquisa), respondeu ao Jornal O Estado de São Paulo em tom de lamento: “Eles não leram a obra e acharam que fosse um livro de apologia às UPP’s”. Sobre esta declaração, depois de ler todo livro, podemos afirmar sem dúvida que, se for verdadeira a hipótese levantada por Bartelt, os estudantes estão com a sensibilidade aguçada e em dia, ou simplesmente enxergaram na capa, onde Policiais Militares são retratados como donos do morro, a evidência da defesa ao projeto. É inegável que os autores manifestam críticas às UPPs, em contrapartida deve-se lembrar de que todas são apresentadas como equívocos e percalços a serem superados no sentido de aprimorá-las ou, nas palavras dos autores, “aperfeiçoa-las”. Sendo assim, as críticas se mostram institucionais, transparecendo que de um modo geral faz-se a defesa do projeto.
Logo na apresentação, ao supor a existência (num passado recente) de apoio unanime ao projeto das UPPs, os responsáveis pela pesquisa demonstram a grande confiança que guardam – ou ao menos guardavam – em relação ao plano de ocupação. Entretanto, a realidade contradiz essa impressão, visto que desde o anúncio da aplicação da “nova” política de segurança pública, setores da intelectualidade, da imprensa popular, dos movimentos sociais e da sociedade civil em geral, posicionaram-se radicalmente contra o projeto da gerência estadual do Rio de Janeiro. O ato de ignorar absolutamente esse movimento crítico – ao dizer ser “algo impensável poucos anos atrás” reivindicar o fim do projeto – nos revela um possível caráter promocional na pesquisa. Jamais foi impensável exigir o fim imediato do plano de ocupação e controle militarizado das favelas cariocas, ao não enxergar o combate às UPPs, que sempre existiu, Cano transparece certa unilateralidade na sua avaliação, causando uma cegueira epistemológica que o leva inevitavelmente ao equívoco.
Os pesquisadores expõem com entusiasmo os dados que apontam uma redução expressiva no índice de mortes violentas em locais com UPPs instaladas, principalmente as que ocorrem em virtude de confrontos com policiais. Apesar de que, também na apresentação, são obrigados pela realidade a, frustrados, lembrar que tais índices, dois anos depois da conclusão do trabalho, caminham na contramão do que havia se verificado. Desaparecimentos, execuções perpetradas pela Policia Militar, confrontos extensos e demais violações de direitos, deixaram de ser pauta exclusiva da Imprensa Popular /Independente e pela constância desses fatos, nem mesmo os monopólios dos meios de comunicação, formados por entidades afinadas com o projeto, puderam ignorar a crise da falácia da pacificação.
Quando, a partir de alguns depoimentos de moradores da Cidade de Deus, demonstram que há uma alteração na relação de identidade e orgulho com o local de moradia, exaltam o que caracterizam como “um dos indicadores mais marcantes de sucesso do programa”. Nesta perspectiva, Os donos do morro são representados como as cegonhas da dignidade, promotores da provável extinção do constrangimento de se morar em favela e da libertação relacionada ao estigma da facção, garantindo aos moradores livre circulação pela cidade, inclusive por outras favelas, onde se abriria a possibilidade de frequentar o desejado baile funk – proibido no seu local de moradia pela Polícia Militar. Um verdadeiro sucesso!
Outro relevante fenômeno apreciado e classificado como “vitória” pelos autores, desta vez no campo simbólico, refere-se à substituição da referência. As crianças e os jovens estariam no período pós-UPP se distanciando do fascínio que o varejo do tráfico poderia exercer sobre eles e, numa relação inversamente proporcional, aproximando-se da influência das forças policiais. Se é que isso ocorre em grandes dimensões nas favelas ocupadas, ainda assim, só pode se caracterizar como vitória do ponto de vista das classes dominantes, até porque o exercício mais perfeito da dominação se realiza justamente quando se consegue fazer do opressor um espelho para oprimido. Trata-se da dominação subjetiva, não pelo medo, mas pela admiração, formas complementares à violência objetiva e física. Como bem diz um dos policiais entrevistados: “não só para matar e prender, mas também para ajudar”.
Identificam uma contradição interessante entre o discurso dos oficiais sobre o projeto – alinhado com as perspectivas formais do mesmo – e o discurso extremamente crítico de alguns subordinados. Os oficiais, talvez somente para satisfazer a opinião pública e/ou manterem seus cargos, defendem uma nova lógica de atuação da polícia, no sentido de “reformá-la” e assim tirá-la dos trilhos da prática de guerra, além de convertê-la milagrosamente em instituição garantidora de direitos fundamentais (ir e vir, liberdade de expressão...). Entretanto, os soldados e demais policiais de baixa patente, apresentam uma série de reclamações que se distanciam das aspirações formais do projeto e exigem, de maneira mais ou menos direta, a guerra ou melhores condições de se inserir nesta. Partindo das críticas aos uniformes, do ponto de vista destes, inadequados à rotina policial por serem trajes sociais, passando pela amargura da limitação da sua capacidade de reprimir em caso de tensões e conflitos, até declararem a profunda insatisfação em trabalhar no regime de UPPs.
Reside nessa questão (subliminarmente) uma velha prática da secular Polícia Militar, que corresponde exatamente ao que é essencialmente o Estado. Devemos compreender os fenômenos a partir da maneira como se expressam na história e não a partir do que gostaríamos que fossem, sendo assim, como nos ensina a tradição marxista, o Estado constitui-se enquanto instrumento de dominação de uma ou mais classes sobre outra(s). Nessa perspectiva, uma estrutura fundamental são as forças armadas que, por meio da coerção, garantem a ordem em benefício das classes dominantes. Ordem esta que, num plano ilusório, aparece como interesse de todos, mas como pode haver interesse geral em sociedades conformadas por classes sociais de aspirações, em última análise, antagônicas, na medida em que uma sustenta sua vida por meio de apropriação da riqueza produzida pela outra?
O que a gerência estadual PMDB realiza, com grande apoio dos monopólios dos meios de comunicação, é a venda do projeto de ocupação e controle das favelas do Rio como uma iniciativa de interesse global. Em nome da “paz”, da “ordem” e da “liberdade”, gerenciam a pobreza no bico do fuzil. Em consequência, quando algum policial recorre a métodos violentos (muitas vezes ilegais) para manutenção da “saudável paz”, apesar do comando plenamente consciente de que algo semelhante necessariamente ocorrerá, tratam de expor à opinião pública como se fosse um “caso isolado”, de responsabilidade exclusiva do indivíduo, como ação fora dos limites do planejamento, algo a ser superado e modificado. Não precisa ser um grande cientista social para identificar na repetição dos chamados “casos isolados”, o que é na verdade, a prática institucional da corporação – camuflada no discurso da promoção do “bem geral”.
A sensação gerada pela leitura de “Os Donos do Morro” é a de que, mesmo pontuando alguns problemas, sustenta-se uma fé no espírito do projeto. A crença num possível processo de reforma da Policia Militar, capaz de tornar a genocida entidade em protagonista da tarefa de se fazer da favela um espaço de direito, integrado e próspero em qualidade de vida, beira a ingenuidade. Confiar na probabilidade das UPPs promoverem uma participação maior e mais autônoma dos moradores nas Associações é contar com o azar. Julgar viável que a atuação da PM possa algum dia, como conduta padrão, “empoderar os moradores, ao invés de decidir por eles” é patinar na ilusão. Considerar que o programa acena ou pode se apresentar como um “círculo virtuoso de pacificação, investimento e integração”, mesmo no ápice de seu “sucesso”, é negligenciar os reais interesses de quem promove, estimula e financia tal política. A serviço de quem está a pacificação? Quem realmente se beneficia? Quando existe, qual é a natureza da tal integração?
A política de ocupação militarizada dos morros cariocas, longe de representar o abandono do paradigma da guerra às drogas, ergue-se justamente como seu aprofundamento, pois ao se pintar a figura do varejista do tráfico como “inimigo da sociedade” a ser combatido, o que se pretende justificar é a aplicação do que na realidade sabemos ser a guerra aos pobres. Infeliz é aquele que supõe que a criminalidade se reduzirá com tal política, que com o tráfico varejista pressionado, novas alternativas de vida se abrirão, não percebe este, que a tática das classes dominantes de gestão da pobreza é justamente sua criminalização. Não há um círculo virtuoso, mas sim um ciclo penal e vicioso. O que ocorre é um programa de controle dos que podem de uma forma ou de outra – através de manifestações dos mais variados tipos – atrapalhar o projeto de cidade forjado pelo grande capital. A sensação de segurança gerada ao se bradar mil vezes por dia na imprensa que se “conteve o inimigo no1 da cidade”, mesmo que falsa, garante a realização dos megaeventos (Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, Visita do Papa...), grandes negócios às empreiteiras, à especulação imobiliária e aos empresários do transporte; traça-se um horizonte multimilionário aos monopólios dos meios de comunicação banhados de ouro pelos patrocinadores desses eventos, que por sua vez também se beneficiam pela exposição das marcas (o que explica tanta apologia); além é claro das grandes empresas do setor de turismo. Entram no balaio da ocupação a concessionária de distribuição de energia elétrica, os representantes de vendas das empresas de TV a cabo, bancos e grandes lojas.
Um Estado conciliador de interesses de classes inconciliáveis, só existe enquanto falácia no discurso de quem domina. Um militar enxerga antes um inimigo que cidadão. Os bancos e empresas que se inserem nas favelas unidos ao processo de ocupação não enxergam cidadania no morador, mas sim potencial de consumo que, diga-se de passagem, muitos não possuem no nível que se espera, gerando assim manifestações. Quem lhes garantirá a dignidade? O Estado os torna culpados até que se consiga provar a inocência, vide “mandado coletivo de busca e apreensão no complexo de favelas da maré”, onde todos são convertidos em suspeitos. A revista policial limita o direito de ir e vir que alguns insistem em dizer ser garantido pela política das UPPs; impõe-se um regime semiaberto onde as celas passam a ser o portão de casa; as manifestações culturais e políticas são constantemente reprimidas; a sensação de confiança do morador, que como a própria pesquisa identifica é relativamente frágil, esvai-se na primeira ação truculenta, no primeiro cerceamento de direito, ou seja, na primeira vez que o projeto revela sua verdadeira face.
As UPPs são a vigilância diária, ou seja, a policialização e judicialização da vida, mas não de todos, apenas dos pobres. A intenção é converter todo problema em problema de polícia, desde o lazer, passando pela educação escolar, até chegar à educação familiar. Os PMs enquanto donos do morro não representam uma etapa de transição para um futuro de liberdade, levantar essa esperança, ao se propor recomendações, é gritar no vácuo. Tem-se montado um Estado Policial. Pretende-se concretamente, em favelas “curiosamente” controladas pela mesma “empresa” – aspecto muito bem observado pela socióloga Vera Malaguti Batista –, resgatar para o Estado o monopólio da violência e não acabar com a mesma, até porque não há maior violência que a quebra geral dos direitos do povo, a precarização da vida e a sua criminalização. Pode parecer fácil dizer isso neste momento de “crise das UPPs”, mas não é de agora que se fala.
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No dia 14 de outubro, no auditório onde se realizaria um “debate” de lançamento do livro “Os Donos do Morro”, os organizadores da pesquisa foram surpreendidos pelo legítimo protesto realizado por estudantes da UERJ. Após o chamado escracho, organizado em repúdio à presença do comandante das Unidades de Policia Pacificadora (UPPs), Frederico Caldas, um dos responsáveis gerais pela aplicação da política opressora de ocupação, Dawid Bartelt, representante no Brasil da Fundação Heinrich Böll (apoiadora da pesquisa), respondeu ao Jornal O Estado de São Paulo em tom de lamento: “Eles não leram a obra e acharam que fosse um livro de apologia às UPP’s”. Sobre esta declaração, depois de ler todo livro, podemos afirmar sem dúvida que, se for verdadeira a hipótese levantada por Bartelt, os estudantes estão com a sensibilidade aguçada e em dia, ou simplesmente enxergaram na capa, onde Policiais Militares são retratados como donos do morro, a evidência da defesa ao projeto. É inegável que os autores manifestam críticas às UPPs, em contrapartida deve-se lembrar de que todas são apresentadas como equívocos e percalços a serem superados no sentido de aprimorá-las ou, nas palavras dos autores, “aperfeiçoa-las”. Sendo assim, as críticas se mostram institucionais, transparecendo que de um modo geral faz-se a defesa do projeto.
Foto do protesto contra a política das UPPs e a presença do Coronel Frederico Caldas na UERJ |
Logo na apresentação, ao supor a existência (num passado recente) de apoio unanime ao projeto das UPPs, os responsáveis pela pesquisa demonstram a grande confiança que guardam – ou ao menos guardavam – em relação ao plano de ocupação. Entretanto, a realidade contradiz essa impressão, visto que desde o anúncio da aplicação da “nova” política de segurança pública, setores da intelectualidade, da imprensa popular, dos movimentos sociais e da sociedade civil em geral, posicionaram-se radicalmente contra o projeto da gerência estadual do Rio de Janeiro. O ato de ignorar absolutamente esse movimento crítico – ao dizer ser “algo impensável poucos anos atrás” reivindicar o fim do projeto – nos revela um possível caráter promocional na pesquisa. Jamais foi impensável exigir o fim imediato do plano de ocupação e controle militarizado das favelas cariocas, ao não enxergar o combate às UPPs, que sempre existiu, Cano transparece certa unilateralidade na sua avaliação, causando uma cegueira epistemológica que o leva inevitavelmente ao equívoco.
Os pesquisadores expõem com entusiasmo os dados que apontam uma redução expressiva no índice de mortes violentas em locais com UPPs instaladas, principalmente as que ocorrem em virtude de confrontos com policiais. Apesar de que, também na apresentação, são obrigados pela realidade a, frustrados, lembrar que tais índices, dois anos depois da conclusão do trabalho, caminham na contramão do que havia se verificado. Desaparecimentos, execuções perpetradas pela Policia Militar, confrontos extensos e demais violações de direitos, deixaram de ser pauta exclusiva da Imprensa Popular /Independente e pela constância desses fatos, nem mesmo os monopólios dos meios de comunicação, formados por entidades afinadas com o projeto, puderam ignorar a crise da falácia da pacificação.
Dançarino Douglas, DG, no programa "Esquenta". |
Foto de DG onde é possível ver a marca da perfuração do projétil que o acertou, a princípio negada pela Polícia Civil |
Quando, a partir de alguns depoimentos de moradores da Cidade de Deus, demonstram que há uma alteração na relação de identidade e orgulho com o local de moradia, exaltam o que caracterizam como “um dos indicadores mais marcantes de sucesso do programa”. Nesta perspectiva, Os donos do morro são representados como as cegonhas da dignidade, promotores da provável extinção do constrangimento de se morar em favela e da libertação relacionada ao estigma da facção, garantindo aos moradores livre circulação pela cidade, inclusive por outras favelas, onde se abriria a possibilidade de frequentar o desejado baile funk – proibido no seu local de moradia pela Polícia Militar. Um verdadeiro sucesso!
Outro relevante fenômeno apreciado e classificado como “vitória” pelos autores, desta vez no campo simbólico, refere-se à substituição da referência. As crianças e os jovens estariam no período pós-UPP se distanciando do fascínio que o varejo do tráfico poderia exercer sobre eles e, numa relação inversamente proporcional, aproximando-se da influência das forças policiais. Se é que isso ocorre em grandes dimensões nas favelas ocupadas, ainda assim, só pode se caracterizar como vitória do ponto de vista das classes dominantes, até porque o exercício mais perfeito da dominação se realiza justamente quando se consegue fazer do opressor um espelho para oprimido. Trata-se da dominação subjetiva, não pelo medo, mas pela admiração, formas complementares à violência objetiva e física. Como bem diz um dos policiais entrevistados: “não só para matar e prender, mas também para ajudar”.
Identificam uma contradição interessante entre o discurso dos oficiais sobre o projeto – alinhado com as perspectivas formais do mesmo – e o discurso extremamente crítico de alguns subordinados. Os oficiais, talvez somente para satisfazer a opinião pública e/ou manterem seus cargos, defendem uma nova lógica de atuação da polícia, no sentido de “reformá-la” e assim tirá-la dos trilhos da prática de guerra, além de convertê-la milagrosamente em instituição garantidora de direitos fundamentais (ir e vir, liberdade de expressão...). Entretanto, os soldados e demais policiais de baixa patente, apresentam uma série de reclamações que se distanciam das aspirações formais do projeto e exigem, de maneira mais ou menos direta, a guerra ou melhores condições de se inserir nesta. Partindo das críticas aos uniformes, do ponto de vista destes, inadequados à rotina policial por serem trajes sociais, passando pela amargura da limitação da sua capacidade de reprimir em caso de tensões e conflitos, até declararem a profunda insatisfação em trabalhar no regime de UPPs.
Capa do livro "Os Donos do Morro" |
Reside nessa questão (subliminarmente) uma velha prática da secular Polícia Militar, que corresponde exatamente ao que é essencialmente o Estado. Devemos compreender os fenômenos a partir da maneira como se expressam na história e não a partir do que gostaríamos que fossem, sendo assim, como nos ensina a tradição marxista, o Estado constitui-se enquanto instrumento de dominação de uma ou mais classes sobre outra(s). Nessa perspectiva, uma estrutura fundamental são as forças armadas que, por meio da coerção, garantem a ordem em benefício das classes dominantes. Ordem esta que, num plano ilusório, aparece como interesse de todos, mas como pode haver interesse geral em sociedades conformadas por classes sociais de aspirações, em última análise, antagônicas, na medida em que uma sustenta sua vida por meio de apropriação da riqueza produzida pela outra?
O que a gerência estadual PMDB realiza, com grande apoio dos monopólios dos meios de comunicação, é a venda do projeto de ocupação e controle das favelas do Rio como uma iniciativa de interesse global. Em nome da “paz”, da “ordem” e da “liberdade”, gerenciam a pobreza no bico do fuzil. Em consequência, quando algum policial recorre a métodos violentos (muitas vezes ilegais) para manutenção da “saudável paz”, apesar do comando plenamente consciente de que algo semelhante necessariamente ocorrerá, tratam de expor à opinião pública como se fosse um “caso isolado”, de responsabilidade exclusiva do indivíduo, como ação fora dos limites do planejamento, algo a ser superado e modificado. Não precisa ser um grande cientista social para identificar na repetição dos chamados “casos isolados”, o que é na verdade, a prática institucional da corporação – camuflada no discurso da promoção do “bem geral”.
Moradores do Morro do Cantagalo denunciaram que por trás da fachada de UPP, policiais organizavam uma milícia na comunidade ocupada. |
A sensação gerada pela leitura de “Os Donos do Morro” é a de que, mesmo pontuando alguns problemas, sustenta-se uma fé no espírito do projeto. A crença num possível processo de reforma da Policia Militar, capaz de tornar a genocida entidade em protagonista da tarefa de se fazer da favela um espaço de direito, integrado e próspero em qualidade de vida, beira a ingenuidade. Confiar na probabilidade das UPPs promoverem uma participação maior e mais autônoma dos moradores nas Associações é contar com o azar. Julgar viável que a atuação da PM possa algum dia, como conduta padrão, “empoderar os moradores, ao invés de decidir por eles” é patinar na ilusão. Considerar que o programa acena ou pode se apresentar como um “círculo virtuoso de pacificação, investimento e integração”, mesmo no ápice de seu “sucesso”, é negligenciar os reais interesses de quem promove, estimula e financia tal política. A serviço de quem está a pacificação? Quem realmente se beneficia? Quando existe, qual é a natureza da tal integração?
A política de ocupação militarizada dos morros cariocas, longe de representar o abandono do paradigma da guerra às drogas, ergue-se justamente como seu aprofundamento, pois ao se pintar a figura do varejista do tráfico como “inimigo da sociedade” a ser combatido, o que se pretende justificar é a aplicação do que na realidade sabemos ser a guerra aos pobres. Infeliz é aquele que supõe que a criminalidade se reduzirá com tal política, que com o tráfico varejista pressionado, novas alternativas de vida se abrirão, não percebe este, que a tática das classes dominantes de gestão da pobreza é justamente sua criminalização. Não há um círculo virtuoso, mas sim um ciclo penal e vicioso. O que ocorre é um programa de controle dos que podem de uma forma ou de outra – através de manifestações dos mais variados tipos – atrapalhar o projeto de cidade forjado pelo grande capital. A sensação de segurança gerada ao se bradar mil vezes por dia na imprensa que se “conteve o inimigo no1 da cidade”, mesmo que falsa, garante a realização dos megaeventos (Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, Visita do Papa...), grandes negócios às empreiteiras, à especulação imobiliária e aos empresários do transporte; traça-se um horizonte multimilionário aos monopólios dos meios de comunicação banhados de ouro pelos patrocinadores desses eventos, que por sua vez também se beneficiam pela exposição das marcas (o que explica tanta apologia); além é claro das grandes empresas do setor de turismo. Entram no balaio da ocupação a concessionária de distribuição de energia elétrica, os representantes de vendas das empresas de TV a cabo, bancos e grandes lojas.
Um Estado conciliador de interesses de classes inconciliáveis, só existe enquanto falácia no discurso de quem domina. Um militar enxerga antes um inimigo que cidadão. Os bancos e empresas que se inserem nas favelas unidos ao processo de ocupação não enxergam cidadania no morador, mas sim potencial de consumo que, diga-se de passagem, muitos não possuem no nível que se espera, gerando assim manifestações. Quem lhes garantirá a dignidade? O Estado os torna culpados até que se consiga provar a inocência, vide “mandado coletivo de busca e apreensão no complexo de favelas da maré”, onde todos são convertidos em suspeitos. A revista policial limita o direito de ir e vir que alguns insistem em dizer ser garantido pela política das UPPs; impõe-se um regime semiaberto onde as celas passam a ser o portão de casa; as manifestações culturais e políticas são constantemente reprimidas; a sensação de confiança do morador, que como a própria pesquisa identifica é relativamente frágil, esvai-se na primeira ação truculenta, no primeiro cerceamento de direito, ou seja, na primeira vez que o projeto revela sua verdadeira face.
As UPPs são a vigilância diária, ou seja, a policialização e judicialização da vida, mas não de todos, apenas dos pobres. A intenção é converter todo problema em problema de polícia, desde o lazer, passando pela educação escolar, até chegar à educação familiar. Os PMs enquanto donos do morro não representam uma etapa de transição para um futuro de liberdade, levantar essa esperança, ao se propor recomendações, é gritar no vácuo. Tem-se montado um Estado Policial. Pretende-se concretamente, em favelas “curiosamente” controladas pela mesma “empresa” – aspecto muito bem observado pela socióloga Vera Malaguti Batista –, resgatar para o Estado o monopólio da violência e não acabar com a mesma, até porque não há maior violência que a quebra geral dos direitos do povo, a precarização da vida e a sua criminalização. Pode parecer fácil dizer isso neste momento de “crise das UPPs”, mas não é de agora que se fala.
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