sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A crença no espírito do projeto – Resenha crítica sobre o Livro “Os Donos do Morro”

O CEBRASPO reproduz abaixo a resenha crítica sobre o livro "Os Donos do Morro", escrita por Guilherme Moreira, professor de sociologia de escolas públicas do Rio de Janeiro localizadas em comunidades militarizadas pelas Unidades de Polícia Pacificadoras. Guilherme é também militante do MOCLATE, Movimento Classista dos Trabalhadores em Educação.

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 No dia 14 de outubro, no auditório onde se realizaria um “debate” de lançamento do   livro “Os Donos do Morro”, os organizadores da pesquisa foram surpreendidos pelo   legítimo protesto realizado por estudantes da UERJ. Após o chamado escracho,   organizado em repúdio à presença do comandante das Unidades de Policia Pacificadora   (UPPs), Frederico Caldas, um dos responsáveis gerais pela aplicação da política   opressora de ocupação, Dawid Bartelt, representante no Brasil da Fundação Heinrich   Böll (apoiadora da pesquisa), respondeu ao Jornal O Estado de São Paulo em tom de   lamento: “Eles não leram a obra e acharam que fosse um livro de apologia às UPP’s”.  Sobre esta declaração, depois de ler todo livro, podemos afirmar sem dúvida que, se for   verdadeira a hipótese levantada por Bartelt, os estudantes estão com a sensibilidade   aguçada e em dia, ou simplesmente enxergaram na capa, onde Policiais Militares são   retratados como donos do morro, a evidência da defesa ao projeto. É inegável que os   autores manifestam críticas às UPPs, em contrapartida deve-se lembrar de que todas são   apresentadas como equívocos e percalços a serem superados no sentido de aprimorá-las   ou, nas palavras dos autores, “aperfeiçoa-las”. Sendo assim, as críticas se mostram   institucionais, transparecendo que de um modo geral faz-se a defesa do projeto. 


Foto do protesto contra a política das UPPs e a presença do Coronel Frederico Caldas  na UERJ



Logo na apresentação, ao supor a existência (num passado recente) de apoio unanime ao   projeto das UPPs, os responsáveis pela pesquisa demonstram a grande confiança que   guardam – ou ao menos guardavam – em relação ao plano de ocupação. Entretanto, a   realidade contradiz essa impressão, visto que desde o anúncio da aplicação da “nova”   política de segurança pública, setores da intelectualidade, da imprensa popular, dos   movimentos sociais e da sociedade civil em geral, posicionaram-se radicalmente contra   o projeto da gerência estadual do Rio de Janeiro. O ato de ignorar absolutamente esse   movimento crítico – ao dizer ser “algo impensável poucos anos atrás” reivindicar o fim   do projeto – nos revela um possível caráter promocional na pesquisa. Jamais foi   impensável exigir o fim imediato do plano de ocupação e controle militarizado das   favelas cariocas, ao não enxergar o combate às UPPs, que sempre existiu, Cano  transparece certa unilateralidade na sua avaliação, causando uma cegueira   epistemológica que o leva inevitavelmente ao equívoco. 

Os pesquisadores expõem com entusiasmo os dados que apontam uma redução  expressiva no índice de mortes violentas em locais com UPPs instaladas, principalmente   as que ocorrem em virtude de confrontos com policiais. Apesar de que, também na   apresentação, são obrigados pela realidade a, frustrados, lembrar que tais índices, dois   anos depois da conclusão do trabalho, caminham na contramão do que havia se   verificado. Desaparecimentos, execuções perpetradas pela Policia Militar, confrontos   extensos e demais violações de direitos, deixaram de ser pauta exclusiva da Imprensa   Popular /Independente e pela constância desses fatos, nem mesmo os monopólios dos   meios de comunicação, formados por entidades afinadas com o projeto, puderam   ignorar a crise da falácia da pacificação.  



Dançarino Douglas, DG, no programa "Esquenta".
Foto de DG onde é possível ver a marca da perfuração do projétil que o acertou, a princípio negada pela Polícia Civil

 

Quando, a partir de alguns depoimentos de moradores da Cidade de Deus, demonstram   que há uma alteração na relação de identidade e orgulho com o local de moradia,   exaltam o que caracterizam como “um dos indicadores mais marcantes de sucesso do   programa”. Nesta perspectiva, Os donos do morro são representados como as   cegonhas da dignidade, promotores da provável extinção do constrangimento de se   morar em favela e da libertação relacionada ao estigma da facção, garantindo aos   moradores livre circulação pela cidade, inclusive por outras favelas, onde se abriria a   possibilidade de frequentar o desejado baile funk – proibido no seu local de moradia   pela Polícia Militar. Um verdadeiro sucesso! 

 Outro relevante fenômeno apreciado e classificado como “vitória” pelos autores, desta vez no campo simbólico, refere-se à substituição da referência. As crianças e os jovens   estariam no período pós-UPP se distanciando do fascínio que o varejo do tráfico poderia   exercer sobre eles e, numa relação inversamente proporcional, aproximando-se da   influência das forças policiais. Se é que isso ocorre em grandes dimensões nas favelas   ocupadas, ainda assim, só pode se caracterizar como vitória do ponto de vista das   classes dominantes, até porque o exercício mais perfeito da dominação se realiza   justamente quando se consegue fazer do opressor um espelho para oprimido. Trata-se da   dominação subjetiva, não pelo medo, mas pela admiração, formas complementares à   violência objetiva e física. Como bem diz um dos policiais entrevistados: “não só para   matar e prender, mas também para ajudar”.  

Identificam uma contradição interessante entre o discurso dos oficiais sobre o projeto –  alinhado com as perspectivas formais do mesmo – e o discurso extremamente crítico de   alguns subordinados. Os oficiais, talvez somente para satisfazer a opinião pública e/ou   manterem seus cargos, defendem uma nova lógica de atuação da polícia, no sentido de   “reformá-la” e assim tirá-la dos trilhos da prática de guerra, além de convertê-la   milagrosamente em instituição garantidora de direitos fundamentais (ir e vir, liberdade   de expressão...). Entretanto, os soldados e demais policiais de baixa patente, apresentam   uma série de reclamações que se distanciam das aspirações formais do projeto e exigem,   de maneira mais ou menos direta, a guerra ou melhores condições de se inserir nesta.   Partindo das críticas aos uniformes, do ponto de vista destes, inadequados à rotina   policial por serem trajes sociais, passando pela amargura da limitação da sua capacidade   de reprimir em caso de tensões e conflitos, até declararem a profunda insatisfação em   trabalhar no regime de UPPs.  

Capa do livro "Os Donos do Morro"

Reside nessa questão (subliminarmente) uma velha prática da secular Polícia Militar,   que corresponde exatamente ao que é essencialmente o Estado. Devemos compreender   os fenômenos a partir da maneira como se expressam na história e não a partir do que   gostaríamos que fossem, sendo assim, como nos ensina a tradição marxista, o Estado  constitui-se enquanto instrumento de dominação de uma ou mais classes sobre outra(s).   Nessa perspectiva, uma estrutura fundamental são as forças armadas que, por meio da   coerção, garantem a ordem em benefício das classes dominantes. Ordem esta que, num   plano ilusório, aparece como interesse de todos, mas como pode haver interesse geral   em sociedades conformadas por classes sociais de aspirações, em última análise,   antagônicas, na medida em que uma sustenta sua vida por meio de apropriação da   riqueza produzida pela outra?  


O que a gerência estadual PMDB realiza, com grande apoio dos monopólios dos meios   de comunicação, é a venda do projeto de ocupação e controle das favelas do Rio como   uma iniciativa de interesse global. Em nome da “paz”, da “ordem” e da “liberdade”,   gerenciam a pobreza no bico do fuzil. Em consequência, quando algum policial recorre   a métodos violentos (muitas vezes ilegais) para manutenção da “saudável paz”, apesar   do comando plenamente consciente de que algo semelhante necessariamente ocorrerá,   tratam de expor à opinião pública como se fosse um “caso isolado”, de responsabilidade   exclusiva do indivíduo, como ação fora dos limites do planejamento, algo a ser   superado e modificado. Não precisa ser um grande cientista social para identificar na   repetição dos chamados “casos isolados”, o que é na verdade, a prática institucional da   corporação – camuflada no discurso da promoção do “bem geral”.

Moradores do Morro do Cantagalo denunciaram que por trás da fachada de UPP, policiais organizavam uma milícia na comunidade ocupada.

A sensação gerada pela leitura de “Os Donos do Morro” é a de que, mesmo pontuando   alguns problemas, sustenta-se uma fé no espírito do projeto. A crença num possível   processo de reforma da Policia Militar, capaz de tornar a genocida entidade em   protagonista da tarefa de se fazer da favela um espaço de direito, integrado e próspero   em qualidade de vida, beira a ingenuidade. Confiar na probabilidade das UPPs   promoverem uma participação maior e mais autônoma dos moradores nas Associações é   contar com o azar. Julgar viável que a atuação da PM possa algum dia, como conduta   padrão, “empoderar os moradores, ao invés de decidir por eles” é patinar na ilusão.   Considerar que o programa acena ou pode se apresentar como um “círculo virtuoso de   pacificação, investimento e integração”, mesmo no ápice de seu “sucesso”, é   negligenciar os reais interesses de quem promove, estimula e financia tal política. A   serviço de quem está a pacificação? Quem realmente se beneficia? Quando existe, qual   é a natureza da tal integração?  


Amarildo está desaparecido desde que foi detido para averiguação por policiais da UPP da Rocinha. Tudo indica que após ser torturado e assassinado, policiais ocultaram seu cadáver e ainda intimidam sua família e outros moradores.
A política de ocupação militarizada dos morros cariocas, longe de representar o   abandono do paradigma da guerra às drogas, ergue-se justamente como seu   aprofundamento, pois ao se pintar a figura do varejista do tráfico como “inimigo da   sociedade” a ser combatido, o que se pretende justificar é a aplicação do que na   realidade sabemos ser a guerra aos pobres. Infeliz é aquele que supõe que a   criminalidade se reduzirá com tal política, que com o tráfico varejista pressionado,   novas alternativas de vida se abrirão, não percebe este, que a tática das classes   dominantes de gestão da pobreza é justamente sua criminalização. Não há um círculo   virtuoso, mas sim um ciclo penal e vicioso. O que ocorre é um programa de controle   dos que podem de uma forma ou de outra – através de manifestações dos mais variados   tipos – atrapalhar o projeto de cidade forjado pelo grande capital. A sensação de   segurança gerada ao se bradar mil vezes por dia na imprensa que se “conteve o inimigo   no1 da cidade”, mesmo que falsa, garante a realização dos megaeventos (Copa do   Mundo, Jogos Olímpicos, Visita do Papa...), grandes negócios às empreiteiras, à   especulação imobiliária e aos empresários do transporte; traça-se um horizonte   multimilionário aos monopólios dos meios de comunicação banhados de ouro pelos   patrocinadores desses eventos, que por sua vez também se beneficiam pela exposição   das marcas (o que explica tanta apologia); além é claro das grandes empresas do setor   de turismo. Entram no balaio da ocupação a concessionária de distribuição de energia   elétrica, os representantes de vendas das empresas de TV a cabo, bancos e grandes lojas.  

Um Estado conciliador de interesses de classes inconciliáveis, só existe enquanto falácia   no discurso de quem domina. Um militar enxerga antes um inimigo que cidadão. Os   bancos e empresas que se inserem nas favelas unidos ao processo de ocupação não   enxergam cidadania no morador, mas sim potencial de consumo que, diga-se de   passagem, muitos não possuem no nível que se espera, gerando assim manifestações.   Quem lhes garantirá a dignidade? O Estado os torna culpados até que se consiga provar   a inocência, vide “mandado coletivo de busca e apreensão no complexo de favelas da   maré”, onde todos são convertidos em suspeitos. A revista policial limita o direito de ir   e vir que alguns insistem em dizer ser garantido pela política das UPPs; impõe-se um   regime semiaberto onde as celas passam a ser o portão de casa; as manifestações   culturais e políticas são constantemente reprimidas; a sensação de confiança do   morador, que como a própria pesquisa identifica é relativamente frágil, esvai-se na   primeira ação truculenta, no primeiro cerceamento de direito, ou seja, na primeira vez   que o projeto revela sua verdadeira face. 

As UPPs são a vigilância diária, ou seja, a policialização e judicialização da vida, mas   não de todos, apenas dos pobres. A intenção é converter todo problema em problema de polícia, desde o lazer, passando pela educação escolar, até chegar à educação familiar.   Os PMs enquanto donos do morro não representam uma etapa de transição para um   futuro de liberdade, levantar essa esperança, ao se propor recomendações, é gritar no   vácuo. Tem-se montado um Estado Policial. Pretende-se concretamente, em favelas   “curiosamente” controladas pela mesma “empresa” – aspecto muito bem observado pela   socióloga Vera Malaguti Batista –, resgatar para o Estado o monopólio da violência e   não acabar com a mesma, até porque não há maior violência que a quebra geral dos   direitos do povo, a precarização da vida e a sua criminalização. Pode parecer fácil dizer   isso neste momento de “crise das UPPs”, mas não é de agora que se fala.

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