domingo, 28 de julho de 2024

 

De Curitiba em 1968 à luta pela terra hoje: entrevista com o escritor Otto Winck.


Fonte: Jornal A Nova Democracia. 


Otto Leopoldo Winck é doutor e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Seus dois últimos romances, Que fim levaram todas as flores e Forte como a morte, retratam, respectivamente, a movimentação cultural e política em Curitiba no ano de 1968 e um panorama político-religioso a partir da relação de camponeses com a terra, a fé e a lei.

AND: De onde veio a ideia para escrever Que fim levaram todas as flores, um romance em Curitiba em 1968?

OTTO: Eu sempre tive fascinação pelos anos 60 e por 68 de maneira especial, desde adolescente. Não sou da época, sou de uma geração posterior. Mas quando eu tomei consciência de mim, a década de 60 tinha mais de dez anos, e já ressoava como uma coisa aurática. A gente não olhava para frente, mas para trás, porque vivíamos um momento muito conservador nos anos 70 e 80 no Brasil e no mundo. Na década de 60, pelo menos no Ocidente, o Ocidente expandido, o Ocidente e as áreas sob sua influência — a classe média na América Latina e em outros locais — viviam um momento, uma onda, de avanço em vários aspectos, social, político e comportamental. A revolução sexual, por exemplo, tem várias bases econômicas e sociais. Não seria possível sem a popularização dos métodos de contracepção. Antes desse período, você não podia comprar uma pílula anticoncepcional em uma farmácia, o sexo resultava quase sempre em gravidez ou, quando muito, em aborto. A iniciação sexual masculina era geralmente num prostíbulo, muitas vezes conduzida por alguém da família, com todas suas consequências traumáticas e todas as opressões de gênero que tal prática reiterava. É bom lembrar que essas conquistas no campo da sexualidade sempre vieram com ameaças, retrocessos ou instrumentalização, mas começaram nos anos 60. Antes disso, essa vanguarda na área do comportamento (sexual) era para intelectuais, artistas, boêmios, uma minoria. A grande massa das classes médias e baixas seguia a moral conservadora, a moral da cegonha citada por Oswald de Andrade no Manifesto antropófago. Na década de 60 as meninas começam então a usar minissaia, começam a ter relações sexuais. Antes as meninas não “davam”, para usar uma expressão machista da época. É nesse momento que  começa a se esboçar a ter certa liberdade sexual e isso assusta a família tradicional estadunidense, brasileira, ocidental. 

Outro aspecto importante também é do consumo de drogas, que viraria em alguns momentos até uma pandemia no Ocidente, como a heroína nos anos 70. Mas nos anos 60 ao menos havia um aspecto de expansão da consciência. Entre esse propósito e a realidade, é claro, havia muito espaço. Mas quem usava drogas antes? Artistas, intelectuais, filósofos. Não havia uma disseminação na juventude da classe média. No caso dos EUA, eram os negros, os músicos de jazz… A polícia não se preocupava. Quando a maconha começou a ser consumida pela classe média branca, aí sim, gerou toda uma histeria, que você pode constatar folheando as revistas da época. 

Ao entrar na adolescência, eu tinha uma fascinação por essa época, no começo pelo aspecto musical e comportamental. A música que fazia sucesso no final dos anos 70 era a música disco, que era muito conservadora, talvez hoje haja uma nostalgia disso, mas era muito conservadora, camiseta pra dentro das calças, cabelo emplastado, era um retorno aos anos 50, só que diminuindo a dimensão rebelde. Veja como é “interessante” o capitalismo, ele antropofagicamente absorve tudo, tira todo o teor contestador e o transforma em um produto anódino. O que a indústria cultural sentiu nos anos 70? Por um momento, nos anos 60, eles perderam o controle. Quando houve Woodstock, 500 mil jovens, não eram 500 mil revolucionários, mas eram 500 mil revoltados com a guerra do Vietnã, não apenas pelo serviço militar obrigatório, mas também pela matança desenfreada e absurda. De repente, 500 mil pessoas em um evento sem organização, empresa, patrocínio, nada, um evento mambembe que chama a atenção do mundo inteiro. E sucessos comerciais com filmes de baixo orçamento como Easy Rider. Nos anos 70, daí, nós temos uma série de filmes mais domesticados voltados para a juventude. Eu me tornei adolescente nessa época e nós olhávamos para a geração anterior com admiração. Pra quem tinha 14, 15 anos, os hippies tinham 28, 30. Eram meio malucos, mas que a gente admirava. Enquanto os jovens da nossa idade queriam ir pro bailinho, dançar, festar e pegar uma menina ou outra, não tinha nada além disso. Então eu já admirava essa década anterior, sobretudo as bandas, Beatles, Rolling Stones, Woodstock, aquilo que eu pude assistir, ouvir, lembrando que naquele tempo o acesso à informação era muito mais raro.

Essa foi a primeira atração, depois foi a questão política, porque foi o momento de maior ascenso revolucionário da história, que se estende um pouco nos anos 70 com a vitória do Vietnã, independência de vários países da África e da Ásia e talvez, como último suspiro, a Revolução Nicaraguense. Depois nós passamos a ter retrocesso atrás de retrocesso. Então os anos 60 foram, no Brasil e no Mundo, uma referência: quando ainda estávamos longe da internet, a comunicação era analógica, em um ano aconteceram estopins em várias regiões e coisas impressionantes. A gente lembra de maio em Paris, mas houve muito mais. Houve protestos no México que resultaram na morte de centenas de pessoas. Um ou dois dias depois do assassinato de Martin Luther King houve revoltas, bairros inteiros queimados. A impressão que se tinha, e que eu quero transmitir no meu livro, era que a revolução estava na próxima esquina. Isso hoje pode parecer muito infantil, esquerdismo infantil, utopia, mas se você tivesse 17, 18, 19 anos e tivesse o coração cheio de sangue e sonhos na cabeça — mesmo no Brasil com a ditadura  — a impressão era de que a vitória estava ao alcance. Você via manifestações multitudinárias nos EUA, na Europa, no México… No Japão houve batalhas campais que duraram 10, 12 horas, de estudantes contra a Polícia. Claro, que a posteriori soa-nos como uma impressão errônea, equivocada. Mas eu sentia uma fascinação por essa época em que os sonhos pareciam estar ao alcance das mãos, e há muito tempo queria trabalhar literariamente esses dois temas, o comportamental e o político.

AND: Tenho a impressão de que isso fica bastante expresso no protagonista, o Rui, que fica cindido entre essa intensificação da luta política e um certo deslumbramento com as novidades, uma espécie de socialismo pequeno-burguês, uma ideia de que a revolução é amanhã…

OTTO: Sim. Já pego esse gancho. Ao mesmo tempo, quando se conta a história de 68 no Brasil, como no livro do Zuenir Ventura, não se menciona. Você vê Rio, São Paulo, Brasília, um pouco Porto Alegre, mas uma das batalhas mais épicas, talvez a única vitória real, foi aqui em Curitiba, onde se pretendia começar um processo de privatização das universidades públicas federais e, graças às manifestações, o Governo Federal recuou e não se falou mais disso. Foi a única vitória concreta desse período. Além disso, teve muita coisa importante acontecendo em Curitiba. O livro da Teresa Urban, 1968, Ditadura Abaixo, uma HQ, me forneceu muitas informações, com muitos desenhos ilustrativos, colagens de revistas e entrevistas da época, música, comportamento, que ela foi testemunha. Então eu queria contar a história do ano de 68 e o entorno, um pouco antes e um pouco depois, sob o ponto de vista de uma cidade bastante provinciana e conservadora quanto Curitiba. 

O meu narrador-protagonista, o Rui, tem uma tensão, pois ele é o narrador mas o foco está no Adrian. O Rui é filho de imigrantes italianos muito pobres, austeros e repressores, e conhece o Adrian na escola, que é de uma situação social levemente superior, o pai é gerente do Banco do Brasil, com certo status. Então o Rui admira o Adrian pela família que ele tem, e o Adrian traz aquelas informações que ele não tinha. O Ruy, por exemplo, não sabia que estávamos numa ditadura, não tinha acesso a Bob Dylan, aos discos, aos livros, não conhecia Sartre… Então começa uma amizade e entra um terceiro elemento, que vai criar um triângulo amoroso rotativo, com a Elisa, que é uma espécie de protofeminista. Não que não fosse feminista, mas eu não quis colocar na fala dela coisas dos anos 70, não quis cometer anacronismo. Imaginei uma adolescente, mulher, menina, nos anos 60, o que ela falaria, o que ela pensaria, que referências ela teria. 

Enfim, eu quis evitar anacronismos, que é muito comum em ficções retrospectivas, você coloca na boca de um personagem dos anos 60, 70, um pensamento que dificilmente ele veria naquele tempo. Tomei muito cuidado, não botei sequer uma gíria que não fosse usada naquele momento. Os dicionários de gíria não são confiáveis, não mostram quando as gírias começaram a circular. Então consultei as pessoas da época, fiz uma pesquisa, me foi muito útil o Pasquim, que começou em 69 e usava muitas gírias, não uma linguagem jornalística tradicional. A seção que enumera uma série de sinônimos da maconha, não tem um que não fosse usado naquele momento, aquilo eu tirei de uma fonte direta, uma coluna do Luiz Carlos Maciel no Pasquim.

Então o meu interesse foi tanto pelo aspecto comportamental dos anos 60 quanto social e político, e tudo isso do ponto de vista de Curitiba. E outra coisa. Normalmente ficções, memórias, autobiografias, etc, focadas nessa época, ou focalizam a questão do desbunde comportamental ou a questão política. E não havia nenhum livro que mostrasse esses dois aspectos, pelo que eu saiba, o que dava a ideia de que eram dois mundos estanques. Ou seja, de que havia o jovem politizado mas relativamente conservador no comportamento, e o jovem “desbundado” mas relativamente alienado na política. Mas não é bem assim. Havia muitos trânsitos entre os dois polos, porque eles frequentavam o mesmo ambiente social. Eram geralmente jovens de classe média e classe média baixa que circulavam na Universidade, nos bares… Um acaba se radicalizando, entrando em um agrupamento armado, o outro não. Mas esse primeiro também ouvia música da época, podia achar alienada, mas ouvia, gostava. Então lendo algumas matérias e relatos, dava a impressão de que eram dois mundos estanques, ou que veio um depois do outro. Mas em 68 já havia o núcleo desses dois mundos. De um lado, Tropicália, Mutantes, de outro lado a radicalização dos jovens. E eram pessoas que conviviam entre si, eu quis mostrar isso. O Rui fica sempre meio que olhando de longe Quando ele é convocado a aderir à luta armada, ele nega. E o Adrian é o cara mais radical, vai para a luta armada, é preso, volta, vai para o desbunde, e depois se torna um empresário de construção bem sucedido e com ideias conservadoras no aspecto comportamental, preocupado com o filho etc. Uma coisa absurda, mas que aconteceu e acontece. Na época que eu escrevi essa cena, não havia ainda Bolsonaro presidente, mas todo esse fantasma já estava iminente. Eu não quis transformar meu personagem em uma caricatura. Enquanto isso pudesse parecer não muito verossímil na época, mas é verdadeiro, aconteceu de fato. Muita gente que foi contra a ditadura, até pegou em armas, ou desbundou, acabou, de uma maneira ou outra, discreta ou abertamente, aderindo ao bolsonarismo. Embora isso tenha acontecido, não quis fazer do Adrian uma caricatura, mas ele vira um burguês liberal, como o pai dele, como a origem de classe dele, cuidadoso, prudente, afinal de contas a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. E ele estava muito bem sucedido. E, perceba, se antes ele estava à esquerda do Ruy, agora no final ele está à direita. Porque o Ruy é um jornalista aposentado, mora sozinho, não se realizou na vida do ponto de vista burguês capitalista.

Este livro chama muita atenção pelo tema, então boa parte das entrevistas e resenhas são sobre o tema. Todavia,sob o aspecto formal, eu não acredito que se possa fazer hoje um romance histórico como se fazia no século XIX. Em termos formais está ultrapassado, essa forma não diz mais respeito à formação social onde nós estamos, então, um romance histórico só é possível do ponto de vista em que haja uma crítica, haja um quê de metahistórico. Então, é um romance dentro de um romance. O que você está lendo é o romance que o Ruy escreveu naquela oficina literária. Então, esse romance, como o Forte como a morte, tem um aspecto metaficcional, além de vários aspectos em que você reporta o tempo todo que está diante de uma ficção. Por mais que haja uma pesquisa documental rigorosa, não é uma reprodução, como se fosse possível, da época. É uma fotografia de um ângulo específico da época, mas mostrando a máquina de fotografia, o cenário, lembrando que é uma construção. Eu pessoalmente acho que essa é a forma possível de escrever um romance histórico no século XXI. Todos os meus romances (Jaboc, Que Fim Levaram Todas as Flores, Forte Como a Morte) tem esse aspecto metaficcional, é uma história dentro de uma história, e o próprio ato de escrever, de produzir ficção, está sempre focalizado e questionado. 

De certa forma, a ideia da representação, que você pode representar o real como ele é, é uma ideia que naturaliza a ideia de representação, e como Barthes dizia, faz parte da ideologia burguesa: você acha que o que você vê, o que você percebe, é o real. Na minha ficção eu gostaria ao mesmo tempo de contar uma história e ao mesmo tempo problematizar essa história. Assim eu quero atingir dois tipos de público. Porque eu também não gostaria de seguir a trilha de uma literatura hermética que só é fruída por um determinado grupo de iniciados. Acho que o caminho que Joyce abriu foi, em certa medida, um beco sem saída. Depois de Ulisses veio Finnegans Wake, depois veio só o silêncio, a música sem som, o quadro sem nada, a tela branca sobre fundo branco. Então por um lado eu quero contar uma história, eu quero agradar aquele público que gosta, entre aspas, de uma historinha. Eu tenho a consciência que, por deficiência de educação no Brasil, muita gente com ensino médio não tem todos os requisitos pra apreender os detalhes, pode achar o livro eventualmente chato. Por que tantas palavras aqui? Por que tanta enumeração? Eu sei disso. Mas eu também não quero abandonar esse público, dar uma banana pra eles. Mas por outro lado eu quero dar uma piscadela pra aquele que busca nas entrelinhas, que, ao mesmo tempo que acompanha a história, está acompanhando o aspecto formal, desde a construção de uma frase, uma metáfora, uma descrição, de um diálogo, uma cena, uma lua aparecendo no final até a construção do romance como um todo. 

AND: Quando você coloca que não gostaria que a arte fosse algo a ser consumido por um grupo de iniciados, vejo que em Que Fim Levaram Todas as Flores, existem as sutilezas, as nuances, mas você não precisa aprender nada que está fora do livro. Todas as maneiras de apreender o livro estão contidas dentro dele mesmo, seria isso?

OTTO: Exatamente. Como acontece com a gente muitas vezes:  estamos lendo um livro e é citado outro autor. Quem é esse cara? Você vai atrás. Quem se interessa só pelo enredo vai poder ler o livro, como muita gente leu e comentou comigo, e vai se interessar pelo aspecto afetivo, ou aspectos cômicos e a história em si. Nós somos seres de narrativa, por mais “sofisticados” que nós sejamos, nós gostamos de acompanhar uma história. Então tem um fio narrativo, um plot bastante forte, mas tem os outros aspectos, os estilos, as alusões, as citações, as colagens, etc.

Livros de Otto Winck; Fonte: Banco de dados do AND

AND: Pode me contar sobre a trama do seu novo livro, Forte Como a Morte?

OTTO: É um livro anterior ao Que Fim Levaram. Eu tinha a história pronta há mais de quinze anos. Mas é meu livro que mais parou e voltou, deixei guardado dois ou três anos, voltei. Foi o que mais levou tempo para encontrar sua forma definitiva. É um livro que exigiu também bastante pesquisa e pesquisas fora do meu campo de experiência. É uma família do interior do Paraná, descendentes de poloneses, pequenos proprietários de terra, mas bastante ameaçados pelo latifúndio, bastante religiosa, embora a família não seja necessariamente carola, fanática, mas religiosos como o descendente polonês nos anos 70 no interior do Paraná seria. Então um belo dia a filha, Rosália, na pré-adolescência, 13, 14 anos, amanhece com manchas nas mãos, pés e lados, que três dias depois se desenvolvem como chagas, estigmas da Paixão de Cristo. A família fica assustada, chama o padre, o padre olha aquilo, não entende, diz: não mostra pra ninguém, vou analisar, rezar por vocês. Mas uma vizinha acabou sabendo e em pouco tempo a menina passou a ser vista como santa,  uma romaria se formando em torno dela. Essa é uma das narrativas. Na outra encontramos a mesma Rosália, agora com mais ou menos 30 anos, três filhos, um inclusive recém-nascido. Está casada e em um acampamento de sem-terras. Ocuparam uma fazenda, mas há a iminência de uma ação de reintegração de posse. Então há essa tensão. A terceira narrativa é de um padre de meia idade. Está terminando a Missa do Galo, no Natal. Ele está se despedindo dos paroquianos ao mesmo tempo em que está relembrando toda a sua história, como surgiu a vocação, entrou no seminário, uma espiritualidade muito conservadora, tradicional. Aí quando é ordenado, vai trabalhar e pensa, como vou falar do Reino de Deus para essas pessoas que estão passando fome, não tem pão, as meninas engravidam com a idade de Nossa Senhora? Aí ele adere à Teologia da Libertação. Agora ele está em uma paróquia de classe média, desencantado, os paroquianos não tem nada a ver com ele. Ele tem uma visão teológica ousada, alternativa, seu mestrado foi sobre a kénosis de Deus, uma teoria de que Deus teria programado seu desaparecimento na História… Então todo mundo foi embora, ele volta para a casa paroquial e é o primeiro Natal que vai passar sozinho, uma festa tradicionalmente associada à família, pessoas próximas, e ele vai passar sozinho, nenhum paroquiano lembrou de convidá-lo, a família dele está longe, ele está em crise, questionando suas decisões. Então ele pega um pedaço de peru na geladeira, um champanhe e vai dar uma volta de carro. Vai pro centro velho e encontra uma prostituta de rua, vão pra um motel mequetrefe e quando ela vai se despir, ele fala: não, eu vim celebrar o Natal. E a partir disso se conectam as três histórias.

Só que essas três narrativas não são contadas uma depois da outra, no modo mais tradicional, mas são cortadas, seccionadas e intercaladas. Então você acompanha as três histórias simultaneamente e aos poucos você vai montando esse quebra-cabeça e entendendo o que aconteceu por lá. No começo até pode ficar um pouco perdido. Mas aos poucos você entende. Eu pensei o seguinte, a gente consegue ler dois ou três livros ao mesmo tempo sem misturá-los, assistimos um filme e uma série ao mesmo tempo, nosso cérebro consegue acompanhar esses fios distintos, então por que não contar várias histórias simultaneamente e aos poucos você junta as peças e compreende o desenho? É como um vitral, você tem que se afastar para compreender. 

AND: Tem algum motivo para ter ido até a região rural nesse romance?

OTTO: O romance tem um diálogo com A Metamorfose do Kafka. O começo faz alusão ao Gregor Samsa, que acorda transformado em um monstruoso inseto. Rosália, depois de sonhos intranquilos, acorda com manchas na mão. É uma pista de que não estamos inteiramente no campo do realismo, mas numa fronteira entre o realismo e o fantástico. Há muitas explicações possíveis para o que acontece com a Rosália. Um personagem diz que é o poder da sugestão. As pessoas mais simples vão dizer: isso é coisa de Deus, uma graça de Deus. Outras: essa coisa é do demônio. Em nenhum momento o narrador sustenta uma explicação. Mostra as várias interpretações possíveis, mas não assina nenhuma para que o leitor tire suas conclusões. Um romance tem que ser capaz de suscitar inúmeras interpretações. Além disso, eu também quis trabalhar alguns outros aspectos. Tem uma hora que eu coloco na mente do Padre Hugo o seguinte: o ateísmo é um fenômeno fundamentalmente ocidental, porque é no Ocidente que apareceu a necessidade de se lutar contra um Deus que assumiu ares pessoais, masculinos, patriarcais e tirânicos. Como é que você vai lutar contra um deus que é algo que se confunde com o mundo, no taoísmo, no hinduísmo, em uma religião de matriz africana? Não há necessidade de ateísmo para um ameríndio, um povo originário. Mas esta determinada configuração – um Deus único, pessoal e despótico -, que se manifesta nas três grandes religiões abraâmicas, é que mais se configurou no Ocidente. E o século XIX foi o século que tomou como símbolo dois grandes mitos, o de Prometeu e o de Lúcifer. Lúcifer é aquele que disse: não servirei. Então, de repente, parcelas oprimidas da população resolvem tomar sua história nas mãos, dizendo: não servirei à Igreja, ao Estado, ao capital. O ateísmo é esse fenômeno no Ocidente. O ateísmo, digamos, moderno, no Oriente, é uma importação do Ocidente, e lá tem outra configuração. A questão de como lidar com o confucionismo na China é diferente de como lidar com o catolicismo em Cuba. 

AND: Já permeamos esse assunto, mas você tem uma proposta de corrente artística vinculada a algum direcionamento político? 
OTTO: Eu me sinto e me coloco sempre à esquerda, com uma previsão de superação revolucionária do sistema capitalista. No entanto, a arte não pode se resumir a um panfleto. Ela é sobretudo um trabalho, e um trabalho crítico, com o seu material. No caso da literatura, esse material são as palavras. Mas essas palavras não estão desenraizadas, elas estão presas ao solo da história. Não existe poema ou romance escrito nas nuvens.




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