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terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

NOTA DO ICC DENUNCIA PACOTE DE MORO

ICC DENUNCIA QUE PACOTE DE MORO INCREMENTARÁ REPRESSÃO ÀS MASSAS


Repercutimos Nota do Instituto Carioca de Criminologia - ICC que critica o pacote draconiano elaborado por Sergio Moro, atual Ministro da Justiça.

Nós do CEBRASPO reiteramos o conteúdo exposto na nota produzida pelo ICC e convocamos todas as entidades democráticas e progressistas a repudiarem este pacote que apenas vai aumentar a violência do velho estado contra as massas mais profundas de nosso país.

Abaixo reproduzimos a nota na íntegra: 




O Instituto Carioca de Criminologia, por decisão unânime de sua Diretoria, vem a público manifestar-se nos termos que seguem. 

O anteprojeto de lei recentemente apresentado ao Congresso pelo Ministério da Justiça, com a pretensão de alterar diversos dispositivos legais que disciplinam o direito, o processo e a execução penal brasileiros contém material farto para uma análise jurídica aprofundada, da qual a academia brasileira certamente se ocupará ao seu tempo. Sem prejuízo disso, o Instituto Carioca de Criminologia, na perspectiva de enriquecer o debate e qualificar as reflexões sobre o tema, apresenta desde logo algumas observações, a recomendar que o anteprojeto seja objeto de escrutínio amplo e cauteloso.


É uma prática saudável e usual que projetos de lei com origem no Poder Executivo e de natureza reformista sejam formatados por juristas ou comissões de juristas nomeados especialmente para esta finalidade. Não é o que acontece com o presente anteprojeto, que parece ter sido obra exclusiva do Ministro da Justiça. Conhecer os verdadeiros autores de uma alteração legislativa tão profunda e estrutural, suas influências e posições políticas, é providência que enriqueceria a crítica.
Em linhas gerais, o anteprojeto apresentado é uma dose mortal de mais do mesmo. Há cerca de duas décadas a legislação penal brasileira vem sendo retalhada por reformas que têm apostado todas as suas fichas na criação de novos tipos penais, elevação de penas e endurecimento de regimes prisionais. Essa aposta reiterada tem na chamada “guerra às drogas” seu exemplo mais eloquente. Os indicadores de violência do período, apenas para ficar nos dados mais frios e estatísticos, são a prova do fracasso dessa política.

É perceptível e chocante o esforço do anteprojeto no sentido de concentrar poderes nas mãos dos juízes, como se as circunstâncias experimentadas nesta quadra histórica não fossem sugestivas exatamente do contrário, de um pacto republicano que promovesse o reequilíbrio entre os poderes, reduzindo o enorme protagonismo que o Judiciário vem ostentando. O efeito suspensivo dos recursos deixa de ser uma questão de legalidade e passa a ficar completamente subordinado ao campo de discricionariedade dos juízes (arts. 421, §§ 3º e 6º, 617, § 1º, 637, §§ 1º e 2º, do CPP). As alterações propostas neste item estão em conflito aberto com o princípio da presunção de inocência, de base constitucional indiscutível, e estabelecem uma espécie de roleta, em que apenas réus agraciados por uma distribuição afortunada serão tratados como inocentes até o trânsito em julgado de suas ações. Para além de contrariar dispositivo expresso da Constituição de 88 (art. 5º, inc. LVII), soa oportunista a pretensão de usar a base parlamentar do governo para se antecipar a uma decisão que o Supremo Tribunal Federal está em vias de proclamar, sob condições preocupantemente dramáticas. Se já não estivesse explícito, o dispositivo que equipara “condenação em segunda instância” ao “trânsito em julgado” (art. 164, da LEP), para fins de extração de certidão, é a digital de uma tendência política colocada em movimento com o propósito de neutralizar uma cláusula pétrea e violar a hierarquia normativa.

A alteração proposta ao artigo 421 do Código de Processo Penal, que retira o efeito suspensivo dos recursos interpostos em face da decisão que encaminha o réu para julgamento perante o Tribunal do Júri, ignora o elevado percentual de decisões de pronúncia que são reformadas em segunda instância. Reduz a segurança jurídica e tem o potencial de criar situações inusitadas, em que o Estado terá submetido ao Tribunal do Júri réus que acabaram sendo impronunciados em razão do provimento de seus recursos. A drástica redução da esfera de incidência dos embargos infringentes (art. 604, § 1º, do CPP) é outra proposta que não responde a nenhuma razão de ordem prática ou fenômeno social. Qual a necessidade de acabar com garantias previstas na legislação para estabelecer proteção a cidadãos que porventura se encontrem na posição de réus? A que interesses atendem tantas medidas de espoliação de direitos?

Anda bem o anteprojeto na alteração proposta quanto ao artigo 23, §§ 1º e 2º do Código Penal e teria andado melhor se, no lugar de “violenta emoção”, houvesse inscrito “perturbação de ânimo”, que é a locução doutrinária e internacionalmente consagrada. A redução de pena sugerida contempla qualquer réu, não apenas o agente de segurança pública, e reconhece circunstâncias específicas (medo, surpresa e violenta emoção) que devem ser objeto de valoração jurídico-penal, proporcionando penas mais adequadas ao caso concreto. O mesmo não se pode afirmar quanto ao artigo 25, incisos I e II do Código Penal, que reedita, apenas para agentes de segurança pública, a legítima defesa presumida, que teve assento remoto na legislação penal brasileira (art. 35, § 1º, do Código Penal de 1890) e era utilizada para tornar impune aquele que matava o ladrão noturno. Esse dispositivo fere o racional de normas domésticas e internacionais orientadas por premissas exatamente opostas: agentes de segurança pública, porque mais preparados e treinados no uso e manuseio de armas de fogo e em situações de confronto, se submetem a regras de legítima defesa mais restritivas. O Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Cumprir a Lei da ONU, adotado por sua Assembleia Geral em 17 de dezembro de 1979, estabelece que “os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida exigida para o cumprimento do seu dever” (art. 3º). Considera o emprego de armas de fogo, mesmo nos casos de legítima defesa, “medida extrema”, determinando que “devem fazer-se todos os esforços no sentido de excluir a utilização de armas de fogo” e que, “em geral, não deverão utilizar-se armas de fogo, excepto quando um suspeito ofereça resistência armada, ou quando, de qualquer forma coloque em perigo vidas alheias e não haja suficientes medidas menos extremas para o dominar ou deter” (art. 3º, “c”). Essas regras foram explicitamente adotadas no Brasil, através da Portaria Interministerial nº 4.226, de 31.dez.10. Tal Portaria submete o emprego de força por agentes de segurança pública aos princípios da “legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência” (item 2), e só faculta o disparo de arma de fogo “em caso de legítima defesa própria ou de terceiros” (item 3), dentre outras restrições pertinentes. A lei nº 13.060/2014 também proíbe expressamente o uso de arma de fogo contra pessoa em fuga ou veículo que desrespeitou bloqueio da via, desde que não se apresente risco imediato à vida ou à integridade física do policial ou de terceiros (art. 2º, § único, incs. I e II). Execuções policiais sumárias promovidas sob o disfarce dos “autos de resistência”, dramática realidade dos centros urbanos brasileiros à qual o anteprojeto provê considerável cobertura, constituíram o objeto da sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana no Caso Favela Nova Brasília em 16.fev.17. Segundo seus itens 17 e 20, respectivamente, “o Estado deverá adotar as medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial, nos termos dos parágrafos 321 e 322 da presente Sentença” e “o Estado deverá adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão ‘lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial’ nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial. O conceito de ‘oposição’ ou ‘resistência’ à ação policial deverá ser abolido, no sentido disposto nos parágrafos 333 a 335 da presente Sentença”. Neste particular, o anteprojeto caminha na contramão de um problema brasileiro crônico – que demanda remédio, e não estímulo.

As mudanças pretendidas no artigo 33, § 5º, e 59, § único, do Código Penal e artigo 2º, § 6º, da Lei nº 8.072/90 são outros expedientes que hipertrofiam o poder dos juízes. O emprego de conceitos vagos e indeterminados na definição de regimes prisionais viola o princípio da legalidade e habilita o magistrado a fixar quase qualquer pena, como se operasse na condição de legislador. Ressuscitar-se o conceito frustrado de criminoso habitual (ou por tendência) é sintoma de grave cegueira teórica, com inegável potencial de abarrotar ainda mais as cadeias brasileiras, que já constituem “estado de coisas inconstitucional”, conforme declarado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da MCADPF 347.
O exotismo do anteprojeto ficou por conta do artigo 1º, inc. III, da lei nº 12.850/13, cujo conteúdo confere dignidade legislativa a algumas organizações criminosas existentes em nosso país. No ponto, o rigorismo descritivo utilizado para apresentar as “facções” de extração popular e originárias em presídios (PCC, CV, ADA, Terceiro Comando e Família do Norte) não alcançou também as “Milícias”. O Ministério da Justiça brasileiro não conhece nenhuma milícia específica ou pretendeu tratá-las como um mal menor, designando como espécie o que na verdade é gênero. As milícias são manifestações perigosas do sistema penal subterrâneo e sua capacidade de influenciar o processo eleitoral e exercer o poder político deveria atrair maior atenção da cúpula do executivo federal, independentemente de suas afinidades ideológicas.

Sobre “medidas para elevar penas em crimes relativos a armas de fogo”, é preciso recordar a decisão que o povo brasileiro proclamou após o resultado do referendo de 2005, que negou vigência ao artigo 35 da lei nº 10.826/03 (“É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei”). A vitória do “não” deveria ter conformado toda a legislação criminal correlata para que, daquele momento em diante, a posse ou o porte de armas fossem enquadrados não como crimes, mas no máximo como contravenções penais. Não é possível compatibilizar a vedação popular ao proibicionismo com dispositivos legais que criminalizam a posse ou o porte de artefatos cuja comercialização foi expressa e soberanamente autorizada.

A medida proposta no artigo 91-A do Código Penal ostenta indisfarçável natureza confiscatória, da qual poucos brasileiros escaparão se submetidos às agruras do processo criminal. Os “critérios” para perdimento de produto do crime não guardam relação necessária com o delito que motivou a condenação, viabilizando uma devassa patrimonial na vida de todo aquele que for condenado à infração a qual a lei comine pena máxima superior a seis anos. Em termos mais simples, pretende-se exigir que todo cidadão brasileiro mantenha contabilidade rigorosa de sua evolução patrimonial durante a vida, de tal forma que, instado pela justiça criminal, esteja sempre em condições de comprovar correspondência absoluta entre patrimônio e ganho declarado, sob pena de ter que entregar propriedades privadas ao Estado. Quer-se, também, atribuir a juízes o poder de escolher a destinação de obras de arte ou outros bens de relevante valor cultural ou artístico cujo perdimento haja sido decretado (art. 124-A), como se o concurso público para ingresso na magistratura atestasse o domínio desse tipo de conhecimento. Espera-se que essa proposta não tenha sido escrita com a finalidade de legalizar ato pretérito de um agente político que, outrora juiz, encaminhou a um determinado museu obras de arte apreendidas no curso de processo criminal.  

O artigo 133-A está em linha com os propósitos declarados de atribuir efeitos de definitividade a decisões provisórias, disciplinando o uso de bens apreendidos no curso de processos judiciais por órgãos de segurança pública. Como poderá acontecer com a execução provisória da pena de multa (art. 50, do Código Penal) e a venda antecipada de bens que sofreram perdimento (art. 133, do Código de Processo Penal), o uso e a deterioração de coisas retiradas da posse de pessoas processadas e ainda sem condenação transitada em julgado criarão um passivo potencialmente considerável para a União e Estados. Para muito além de mitigar o princípio da propriedade privada (art. 170, inc. II, da CR/88), tão caro aos liberais-conservadores, a medida joga a União e os Estados no polo passivo de inúmeras ações indenizatórias que certamente serão ajuizadas.
Alterações legislativas promovidas para “evitar a prescrição” são medidas que, no fundo, atentam contra o princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, inc. LXXVIII). O Estado brasileiro gasta cerca de 1,4% do seu PIB com o Poder Judiciário. A julgar pela quantidade de recursos que consome, é de se esperar que a justiça criminal consiga entregar respostas satisfatórias e em prazo adequado, sem que o legislador tenha que regulamentar restritivamente o instituto da prescrição. 

A criação de nova hipótese de resistência qualificada (no caso de resultado morte ou risco de morte do funcionário ou de terceiro, art. 329, §2º), com penas que variam de 6 a 30 anos, é desnecessária porque o vigente § 2º do artigo 329 já prevê o concurso material entre a resistência e o crime correspondente à violência. Além disso, tal pretensão legislativa afronta o princípio da proporcionalidade, ao buscar cominar para um crime qualificado pelo resultado, no qual o dolo está presente na ação típica antecedente, sendo o resultado geralmente atribuído ao seu autor a título de culpa, uma escala penal comparável à do homicídio qualificado, em que o resultado morte é evidentemente doloso.

As medidas propostas para introduzir soluções negociadas no processo penal, também conhecidas e propagadas como plea bargain, não são propriamente uma novidade – abrigam-nas, de certa forma, a lei nº 9.099/95 – e coroam a importação acrítica de institutos norte-americanos para o direito brasileiro. A solução negociada, a depender do contexto em que está inserida, da densidade democrática do sistema de justiça criminal respectivo e de sua estrutura normativa, pode não ser um mal em si. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, onde mesmo assim ela é alvo de muitas críticas, o plea bargain convive ao lado da garantia do júri popular, cuja competência é muito mais abrangente que a de seu congênere brasileiro. Inserir o plea bargain, à revelia de estudo aprofundado, numa realidade como a nossa, de desrespeito reiterado ao princípio da paridade das armas, de sucateamento das defensorias públicas e de juízes pouco comprometidos com os valores democráticos pode significar pura, simples e cruel antecipação da pena, atingindo até mesmo réus inocentes.

Pretende-se criar hipótese de vedada responsabilidade penal objetiva no artigo 350-A, §§ 1º e 2º do Código Eleitoral. O terceiro que doa, contribui ou fornece recursos a candidatos que os contabilizam paralelamente não pode responder pelos atos do donatário; tampouco o podem os órgãos da direção partidária. O crime somente pode ser atribuído a quem lhe deu causa (art. 13, “caput”, do CP). A circunstância de haver doado recursos ou de integrar órgão de direção partidária vinculado ao candidato que executa a contabilidade paralela não basta para fins de imputação jurídico-penal. 
Em oração sugestiva de generosidade, compromisso público e certa dose de complacência, o anteprojeto, no que propõe para o artigo 3º, §5º da lei nº 11.671/08, preceitua que “as gravações de atendimentos de advogados (nos presídios federais) só poderão ser autorizadas por decisão judicial fundamentada”. O uso do advérbio “só” faz parecer ao leitor incauto que, previamente ao anteprojeto, o ordenamento tolerava gravações de atendimentos de advogados sem autorização judicial, o que não é verdade. Conversas havidas entre clientes e advogados são cobertas pelo manto da confidencialidade (arts. 133 e 5º, inc. LV da CR/88 e art. 7º, inc. III, da Lei nº 8.906/94), da mesma forma como se protegem as confissões em ambientes religiosos e as sessões de terapia psicológica ou psicanalítica. A propósito, é preciso avisar aos padres, pastores e ministros, às sociedades de psicanálise e aos conselhos de psicologia acerca da possibilidade do uso desse dispositivo, por analogia, em seus espaços de assistência. Está-se propondo a relativização de um sigilo essencial ao estado democrático de direito, sem o qual o processo penal se transforma em jogo de cartas marcadas, com desprezo absoluto pela defesa.

Porque outorga poderes mais abrangentes e efetivos aos membros do Poder Judiciário, o anteprojeto certamente será bem recebido pela magistratura. Será também festejado pelo Ministério Público, que disporá de instrumentos investigatórios e processuais ainda mais invasivos, disputando versões e promovendo acusações em condições mais favoráveis. Será ótimo para a “indústria do controle do crime”, construtores e gestores de penitenciária e donos de empresas de tecnologia da segurança. Oferecerá horizontes de negócios inimagináveis, com perspectiva crescente de lucros baseados no comércio do controle social da pobreza. E ao contrário do que pensam alguns, será igualmente bom para os advogados, que terão mais clientes com a expansão do sistema penal ora proposta, assim como significativo espaço, nas inconsistências e fragilidades do anteprojeto, para questionamentos jurídicos procedentes. Será péssimo, entretanto, para a cidadania, que terá suprimido rol significativo de direitos e garantias individuais, em favor de um Estado que parece definitivamente empenhado em substituir políticas sociais por política criminal de baixa qualidade e procedência ignorada.

Nilo Batista
PRESIDENTE

Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista
SECRETÁRIA EXECUTIVA

André Filgueira do Nascimento
DIRETOR-TESOUREIRO

Rafael Caetano Borges
DIRETOR-SECRETÁRIO


A nota pode ser lida também no seguinte endereço: https://cedecarj.org.br/2019/02/07/nota-do-instituto-carioca-de-criminologia/

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